O nome "Gran Circo" exprime bem a maneira como penso.
Aparentemente caótico, mas muito planejado, às vezes irônico mas sobretudo divertido.
Não esperem só palhaçadas.
Críticas e manifestações humanas em geral terão lugar garantido no picadeiro.

Agora vamos ver como os domadores e palhaços que moram entre as minhas orelhas irão se comportar!



06 julho 2014

O vaso quebrado e suas lições

 

Em minha última viagem a Belém há muitos anos, trouxe algumas peças de cerâmica marajoara, entre elas uma réplica de urna funerária, que nem sei se guardava alguma coisa da arte original, mas que era esteticamente bonita.

Desafiando todos os avisos da companhia aérea, essas peças resistiram a uma viagem aérea como bagagem e chegaram intactas.

À exceção da tal urna, todas as demais ainda decoram a nossa casa. Ela mesma decorou a nossa sala até que um dia foi encontrada quebrada, provavelmente por ter sido abalroada pelo Joe, nosso weimaraner, mas eu guardei os cacos porque achava, ainda que de modo improvável, que eu ainda faria uma restauração.

Há alguns dias eu descobri a técnica japonesa do Kintsugi (emenda dourada), para reconstruir peças cerâmicas que tenham valor afetivo, usando uma argamassa composta com pó de ouro ou com outro metal precioso. Dizem os japoneses em sua sabedoria que as quebras são inevitáveis e fazem parte da história dos objetos. Desse modo, devemos aceitá-las e os reparos e suas cicatrizes devem ser valorizados e não disfarçados.  Essa técnica destaca as emendas ao preenchê-las com um material valioso, tornando o objeto consertado algo único e especial.

Filosoficamente, ao enfatizar as imperfeições da peça, a técnica, metaforicamente, nos induz a aceitar as mudanças e os eventos da vida com suas rachaduras e cicatrizes, como parte da nossa história e experiência.

É claro que eu não teria condições de levar a técnica ao pé da letra utilizando ouro nas emendas, mas vou tentar fazer um trabalho esteticamente decente com materiais disponíveis no mercado.

Neste primeiro final de semana de Julho eu resolvi dar cabo da primeira etapa juntando os cacos do vaso, e fiquei surpreso em descobrir como essa atividade despertou em mim reflexões sobre os fatos de nossa vida; de como consertamos os nossos cacos e como seguimos em frente.

Os cacos maiores e que foram juntados em primeiro lugar, se encaixaram quase perfeitamente e não ofereceram dificuldade. As marcas da emenda foram mínimas. Mas a medida que os cacos se tornavam menores e a montagem mais delicada e complexa, eu percebi que isso trazia imprevistos porque a cada novo caco, apesar da forma e do vazio parecerem exatamente iguais,  o encaixe já não acontecia mais.  A irregularidade da fratura, tanto ao longo do seu contorno quanto na espessura das bordas impedia completamente que as peças se acomodassem.

Eu me dei conta que para conseguir fazer a restauração eu precisaria modificar os cacos. Isso implicou em regularizar suas bordas e, em muitos casos reduzir a forma do caco deixando-o menor, porque as pequenas acomodações entre as peças ao longo do processo, mudaram sutilmente os espaços entre os cacos.

Quer metáfora melhor para a reconstrução da vida? Os pequenos grandes problemas são consertados mais facilmente deixando poucas marcas. Entretanto, para consertar os pequenos problemas, que acontecem com muito maior frequência, estes precisam ser aparados, reduzidos, e adaptados para que os encaixes sejam possíveis.

Mas o mais importante é que não faz sentido tentar esconder as emendas. O material utilizado para isso é muito nobre e valoriza o esforço para a reconstrução, tornando a nossa vida que é sempre única e especial, ainda mais nobre e brilhante.

Agora o vaso está remontado e pronto para ser colado. Ainda assim há alguns buracos porque houve perda do material original.  Exatamente como na vida.

 

 

Um comentário:

Cristina disse...

Ótima texto professor,mas não se esqueça que ao colar os fragmentos não poderá ser adicionado adesivo sintéticos e sim materiais naturais. Se colocado adesivo os fragmentos não se encaixarão novamente....